Racionais MC’s, músicos recebem título honorário da Unicamp

Álbum do grupo é leitura obrigatória para entrada na Universidade de Campinas no estado de São Paulo
Racionais recebem título honorário da Unicamp - SP
Racionais recebem título honorário da Unicamp - SP

O grupo de rap Racionais MC’s, formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, têm sido a voz da periferia por mais de três décadas, trazendo à tona questões cruciais que muitas vezes são ignoradas pela mídia tradicional e pelas representações políticas.

Eles já superaram muitos obstáculos para alcançarem a popularidade e o merecido respeito como um dos melhores representantes do movimento hip-hop e sua manifestação poética musical, o rap.

As composições de rimas e poesias engajadas socialmente transcenderam as comunidades periféricas de São Paulo para alcançar o Brasil e o mundo.

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Em 2023, o trabalho produzido pelo Racionais MC’s obteve uma honraria inusitada, seus integrantes se tornaram os primeiros músicos afro-brasileiros indicados a receberem o título de “Doutor Honoris Causa” pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Essa conquista não é apenas um marco na carreira do grupo, mas também um reconhecimento importante da contribuição do rap e da cultura hip-hop para a sociedade brasileira.

Desde o início de sua jornada musical em 1988, o grupo tem usado suas letras como uma ferramenta poderosa para denunciar as injustiças sociais e raciais que afetam as comunidades marginalizadas do Brasil.

Suas músicas não são apenas entretenimento, mas sim um chamado à ação, uma forma de conscientização e um meio de dar voz aos que muitas vezes são silenciados pela sociedade.

O parecer recomendando a concessão da honraria inclui os rappers Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay entre os “maiores intelectuais da contemporaneidade brasileira”. A distinção foi aprovada pelo conselho universitário da instituição no final de novembro.

Ice Blue, Mano Brown e KL Jay participam de uma aula aberta realizada na Unicamp.

Esta decisão da Unicamp é um reconhecimento significativo do impacto cultural e social dos Racionais MC’s. Ao classificá-los como “maiores intelectuais da contemporaneidade brasileira”, a universidade está validando a importância do conhecimento e da experiência que vêm das ruas, das periferias e das comunidades marginalizadas.

É um passo importante para a democratização do conhecimento e para a valorização de formas alternativas de produção intelectual.

O título de Doutor honoris causa é tradicionalmente concedido a pessoas que se destacaram em suas áreas de atuação, seja na ciência, nas artes ou na política.

Ao conceder este título aos Racionais MC’s, a Unicamp está reconhecendo o rap e a cultura hip-hop como formas legítimas de produção de conhecimento e de intervenção social.

“Trata-se de uma unidade referenciada pela coletividade. E que em suas letras e práticas públicas devolve à coletividade um sentido de história partilhada e associativa, que busca tocar imediatamente a audiência de pobres e afro-brasileiros periféricos. Mas, a partir deste lugar, fala sobre e para o Brasil, mais amplo que aquela audiência”

Argumenta o professor Mário Medeiros, do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e presidente da comissão de especialistas formada para avaliar a pertinência da concessão do título ao grupo.

Reconhecimento social e responsabilidade política

As palavras do professor Medeiros destacam um aspecto crucial do trabalho dos Racionais MC’s: sua capacidade de falar diretamente para a periferia, mas ao mesmo tempo alcançar um público mais amplo. Suas músicas, embora enraizadas na realidade das comunidades periféricas, têm a capacidade de tocar pessoas de diferentes classes sociais e regiões do país.

Esta característica do trabalho dos Racionais MC’s é particularmente importante no contexto brasileiro, um país marcado por profundas desigualdades sociais e raciais. Ao dar voz às experiências e perspectivas das comunidades marginalizadas, o grupo contribui para uma compreensão mais ampla e complexa da realidade brasileira.

Formação teórica

A ideia de conceder o título de doutores honoris causa aos Racionais surgiu em uma disciplina de graduação ministrada pela professora Jaqueline dos Santos, que também é pesquisadora de Geledés Instituto da Mulher Negra.

A organização foi fundamental na formação política do grupo. Foi lá que, no início da década de 1990, os músicos se aproximaram de temas como o feminismo negro.

Esta informação é crucial para entender a trajetória intelectual e política dos Racionais MC’s. O Geledés Instituto da Mulher Negra é uma organização da sociedade civil fundada em 1988, que tem como missão o combate ao racismo e ao sexismo.

O fato de os membros do grupo terem se aproximado desta organização no início de sua carreira demonstra seu compromisso com questões sociais e políticas desde cedo.

A aproximação com temas como o feminismo negro também é significativa. Isso mostra que, desde o início, os Racionais MC’s estavam interessados em compreender e abordar as múltiplas formas de opressão que afetam as comunidades afrobrasileiras e periféricas.

Esta formação teórica e política se reflete em suas letras, que frequentemente abordam temas como racismo, machismo e desigualdade social de maneira complexa e nuançada.

Estudantes e convidaos prestigiam aula aberta com com os Racionais MC’s

“O Geledés era nosso ponto de encontro na época, a gente se encontrava para trocar informações, ideias e livros, falar sobre os livros, as leituras. Era um ponto de encontro – a [escritora e ativista antirracismo] Sueli Carneiro era tipo a chefe.

Dali começou a surgir todo um movimento, uma história de escrever as letras e de praticar as coisas que Malcolm X [ativista dos direitos humanos e defensor do nacionalismo negro nos Estados Unidos, morto em 1965] falava.

Dali a gente despertou o interesse pela leitura”, relembrou Kl Jay em aula pública na Unicamp, em novembro de 2022.

Este depoimento de KL Jay é revelador. Ele mostra como o Geledés funcionava não apenas como um espaço de formação política, mas também como um ambiente de troca de ideias e de estímulo à leitura e ao aprendizado.

A menção a Malcolm X é particularmente significativa, pois demonstra como os Racionais MC’s se inspiraram em figuras importantes do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.

É importante notar que esta formação teórica e política não ficou restrita aos membros do grupo. Através de suas músicas e de suas intervenções públicas, os Racionais MC’s têm compartilhado esse conhecimento com um público muito mais amplo, contribuindo para a conscientização política de toda uma geração de jovens das periferias brasileiras.

Segundo o professor Mário Medeiros, a proposta também foi pensada em conjunto com outras instituições como o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro Cebrap) e a Universidade Estadual de Londrina.

O envolvimento de outras instituições na proposta de concessão do título demonstra o reconhecimento amplo da importância dos Racionais MC’s não apenas no campo da música, mas também na produção de conhecimento sobre questões raciais e sociais no Brasil.

Isso reforça a ideia de que o trabalho do grupo transcende o campo artístico, tendo impacto significativo nas áreas de pesquisa e formação acadêmica.

Álbum do grupo é leitura obrigatória para entrada na universidade – Unicamp
Leitura obrigatória

A primeira incursão formal dos Racionais na Unicamp, no entanto, foi em 2020, quando o livro Sobrevivendo no Inferno passou a ser de leitura obrigatória para o vestibular de ingresso na universidade. A publicação traz as letras do álbum lançado em 1997 pelo grupo.

A inclusão de Sobrevivendo no Inferno como leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp é um marco importante. Isso coloca o trabalho dos Racionais MC’s ao lado de obras clássicas da literatura brasileira e mundial, reconhecendo seu valor literário e sua importância cultural.

Além disso, essa decisão traz para dentro da universidade discussões sobre temas urgentes da realidade brasileira, como violência policial, racismo e desigualdade social.

Sobrevivendo no Inferno é considerado um dos álbuns mais importantes da história do rap brasileiro. Lançado em 1997, o álbum vendeu mais de 1,5 milhão de cópias, um feito notável para um grupo independente. Mais do que um sucesso comercial, o álbum se tornou um marco cultural, influenciando gerações de artistas e ouvintes.

As letras do álbum abordam temas como violência policial, racismo, desigualdade social e a realidade dura das periferias brasileiras. Músicas como “Diário de um Detento” e “Capítulo 4, Versículo 3” se tornaram hinos de uma geração, dando voz às experiências e frustrações de milhões de brasileiros marginalizados.

O disco tem algumas das músicas mais conhecidas do grupo, como Diário de um Detento. “Após o lançamento da música, diversos grupos de rap começaram a surgir dentro dos presídios, como 509-E, Detentos do Rap e Liberdade Condicional, entre outros, que viram no gênero musical uma saída para transformar suas vidas”, diz o sobre os impactos da produção do grupo.

O impacto de Diário de um Detento vai além de seu sucesso musical. A música, que narra a rotina de um presidiário e denuncia as condições desumanas do sistema carcerário brasileiro, teve um efeito transformador.

Ao dar voz aos detentos e humanizá-los, a música contribuiu para uma reflexão mais profunda sobre o sistema prisional e a justiça no Brasil.

Rap – uma cultura musical que retrata a realidade do país

O surgimento de grupos de rap dentro dos presídios após o lançamento de Diário de um Detento é um testemunho do poder transformador da música. Para muitos detentos, o rap se tornou não apenas uma forma de expressão, mas também uma ferramenta de reflexão, crítica social e, em alguns casos, uma oportunidade de reconstrução de vida após o cumprimento da pena.

Medeiros enxerga o título dado aos músicos como uma forma de abrir as portas da universidade para valorização de grupos até hoje sub-representados na instituição.

“A Unicamp poderá iniciar um ciclo distintivo e distinto em sua trajetória, em que intelectuais negros, mulheres intelectuais e intelectuais dos povos originários possam ser reconhecidos e representados como sujeitos valorizados por uma renomada instituição de conhecimento e saberes, em que sua contribuição para produção de conhecimento sobre a sociedade é legitimada”, enfatiza.

A visão do professor Medeiros aponta para o potencial transformador desta decisão da Unicamp. Ao reconhecer os Racionais MC’s como doutores honoris causa, a universidade não está apenas homenageando quatro artistas, mas sim abrindo um precedente importante para a valorização de formas de conhecimento e produção intelectual que tradicionalmente têm sido marginalizadas no ambiente acadêmico.

Público participa do encerramento da aula aberta no auditório de convenções da Unicamp – SP

Este reconhecimento pode ter um impacto significativo na diversificação do ambiente universitário. Ao legitimar o conhecimento produzido por artistas negros da periferia, a Unicamp está enviando uma mensagem poderosa sobre a importância da diversidade na produção de conhecimento.

Isso pode inspirar mais jovens negros, indígenas e de outras comunidades marginalizadas a buscarem o ensino superior e a verem a universidade como um espaço que também pertence a eles.

Além disso, esta decisão pode contribuir para uma mudança na forma como o conhecimento é produzido e valorizado dentro da universidade. Ao reconhecer a contribuição dos Racionais MC’s para a produção de conhecimento sobre a sociedade brasileira.

E assim, desse modo, a Unicamp está ampliando o que se entende por conhecimento acadêmico, incluindo formas de saber que vêm da experiência vivida e da expressão artística.

Em última análise, o reconhecimento do Racionais MC’s com o título “Doutor Honoris Causa” pela Unicamp é um passo importante na direção de uma universidade mais diversa, inclusiva e relevante para a sociedade brasileira como um todo.

É um reconhecimento do poder transformador da arte e da cultura, e um convite para que mais vozes diversas sejam ouvidas e valorizadas no ambiente acadêmico.

Atualização: Redação Zygbau
Fotos: Divulgação Racionais MC’s e Unicamp

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